
Um casal que trouxe uma jovem ainda criança do interior para Salvador foi condenado pela Justiça a pagar R$ 50 mil de indenização para ela. Segundo a 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia (TRT-BA), a menina passou a atuar como empregada doméstica, apesar dos patrões alegarem ser uma “filha de criação”.
A informação foi divulgada nesta terça-feira (7). De acordo com o TRT, a mulher estava nessa função desde jovem e não teve as mesmas oportunidades que os outros moradores da casa. Os patrões alegaram que ela era “filha de criação” deles. O casal trouxe para Salvador a menina que morava em Lamarão aos 6 anos. Inicialmente, ela iria ajudar o patrão, que na época tinha sofrido um acidente.
Em 2003, o casal conseguiu a guarda da criança e a partir desse momento ela passou a trabalhar para a família. Ela precisava acordar às 4h para fazer o café da manhã da família antes da patroa sair para o trabalho. Em alguns momentos ela estudava pela manhã e outros à tarde.
Quando completou 15 anos, nasceu o neto dos patrões, que a obrigaram a deixar os estudos temporariamente para cuidar dele. Ainda conforme o TRT, somente aos 24 anos ela conseguiu concluir o ensino médio por meio do supletivo.
Os patrões alegaram que conheciam a menina desde cedo, pois visitavam Lamarão com frequência, e que a mãe dela a entregou alegando que a família passava fome. Disseram ainda que a receberam apenas com a roupa do corpo e uma sandália nos pés. No ano de 2020, quando ela questionou a situação, foi expulsa da casa.
“Corpo disponível para o trabalho”
Para a juíza Viviane Martins, da 12ª Vara do Trabalho de Salvador, é necessário analisar fatores socioeconômicos, históricos e culturais na aplicação do direito, em uma perspectiva antidiscriminatória.
Segundo ela, as testemunhas comprovaram que a mulher nunca foi tratada como filha ou irmã. Ela explica que de acordo com o que dito por uma testemunha a mulher passou a ser vista como um peso para a família pela sua presença sem a realização das atividades domésticas.
O “irmão”, segundo seu próprio relato, “tomou as rédeas” e decidiu expulsá-la, sem se preocupar com seu destino. Outra testemunha, amiga da dona da casa há mais de 15 anos, nem se lembrava do nome da jovem.
A juíza fez um paralelo com a pesquisadora Grada Kilomba, que relata ter sido convidada aos 12 anos para acompanhar uma família em viagem de férias, mas, na prática, para prestar serviços domésticos à família de um médico. Para a magistrada, a menina negra deixou de ser vista como criança e passou a ser tratada como “corpo disponível para o trabalho”.
Ela determinou que fosse reconhecido o vínculo de emprego, com anotação em carteira, pagamento de salários e indenização por danos morais no valor de R$ 100 mil.
Primeira Turma
Os patrões recorreram, e o caso foi julgado pela 1ª Turma do TRT-BA. A relatora, juíza convocada Dilza Crispina, destacou que a prática de “adoção” de meninas do interior ou de periferias por famílias de centros urbanos, sob promessa de acesso à educação e mobilidade social, é comum no Brasil.
“Essas crianças acabam submetidas a precárias relações de trabalho doméstico infantil que perpassam aspectos relacionados à herança colonialista/escravista”, destaca.
A relatora manteve o reconhecimento do vínculo de emprego, reforçando que a menina nunca foi integrada à família como filha ou irmã. Porém, considerou que o valor da indenização ultrapassava a capacidade econômica dos patrões e reduziu para R$ 50 mil. Cabe recurso. A decisão foi unânime quanto ao vínculo de emprego e por maioria quanto ao valor da indenização.