
Tem a sensação de que está vendo um anúncio de gravidez por dia no seu feed? Se sim, você não está sozinho. Nos últimos meses, tem sido comum atualizar as redes sociais e se deparar com uma nova divulgação de gestação, chá revelação ou ensaios newborn.
Muitas pessoas têm relatado a sensação de que 2025 está embalado por um verdadeiro “baby boom” de famosas e anônimas. Entre as celebridades brasileiras, há pelo menos 25 esperando um bebê, como Camila Queiroz, Rafa Kalimann e Mariana Rios.
Mas será que esse aumento na taxa de natalidade é real ou apenas uma impressão causada pelas redes sociais? A resposta está em um mix de fatores sociais, culturais e, principalmente, midiáticos.
Os anúncios de gravidez cada vez mais elaborados viram uma espécie de “trend”. Nesse contexto, o compartilhamento rápido de emoções faz parecer que estamos vendo mais gestações, ainda que a taxa real no Brasil esteja em queda.
De acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2023, o Brasil teve o menor número de nascimentos em quase 50 anos. Cerca de 2,52 milhões de bebês nasceram no país, número que representa uma queda de 0,7% em relação a 2022. Este foi o quinto ano consecutivo de recuo nas estatísticas de natalidade, reforçando uma tendência já observada há mais de uma década.
Então, o que explica essa sensação de aumento de casos? O PS Notícias conversou com especialistas para entender o cenário que mistura planejamento familiar, tendências culturais e o desejo de compartilhar bons momentos online.
“Escassez que virou um espetáculo”
De acordo com a especialista em Sexualidade, Gênero e Saúde das Mulheres, Dra. Náila Neves, as redes sociais, de fato, podem impactar nessa sensação, devido à amplificação das vozes.
“Não estamos vivendo um boom real de gestações no Brasil. Muito pelo contrário. O que faz esta sensação é o efeito da visibilidade, mesmo seletiva. Hoje tem uma série de redes sociais, tem uma amplificação das vozes de muitas pessoas em várias dessas mídias e algumas figuras públicas, como influenciadoras e atrizes, que exibem as suas gestações com muitos detalhes, com engajamento. Outro ponto é que as gestações estão sendo mais espetacularizadas, utilizadas como parte de uma narrativa de marca pessoal. E isso pode nos dar a impressão de abundância, quando na realidade é uma escassez que virou um espetáculo”, explicou.
Náila aponta que essa espetacularização é realizada, na maioria das vezes, por mulheres brancas de classe média alta, que fazem do momento uma espécie de capital simbólico.
“É normalmente aquela gestação romântica, performada, com luxo, com ensaios fotográficos, com quartos planejados, com produtos de luxo, em que as pessoas servem canapés para os acompanhantes. Então, o corpo grávido virou um conteúdo. O parto deixa de ser um momento da pessoa que gesta com a criança, para ser um momento que é um espetáculo, um documentário”, continuou.
Segundo ela, a fase de gestação, parto e início da maternidade, que costuma ser extremamente profunda para a mulher, acaba sendo retratada de forma editada, o que reforça uma maternidade irreal. No entanto, ela alerta que esse ato pode ser excludente, se analisado um cenário amplificado.
“Se a gente pensar em alguns outros tipos de mulheres, como negras, faveladas, elas não têm essa mesma maternidade de ouro, essa maternidade linda, né? Elas vivem algo real, permeada de várias dificuldades, de vários problemas. Então, nesse sentido da maternidade ter virado um símbolo de status, o sentido de ser mãe, ela pode representar um status desde que atenda alguns tipos de códigos de feminilidade contemporânea: autocuidado, beleza, doçura e um bebê como uma exceção estética desse perfil. Muitas vezes, também não representa uma sociedade tão heterogênea como a sociedade brasileira”, apontou.
“O algoritmo entende que esse conteúdo é interessante”
Toda essa “espetacularização” é entendida de forma positiva pelo algoritmo das redes sociais. De acordo com o especialista em marketing e consumo digital, Gustavo Coutinho, essa ilusão de que há muitas mulheres grávidas é causada pelo tipo de conteúdo que recebemos na internet.
“Com o grande volume de jovens mostrando que ficaram gestantes, o algoritmo entende que esse conteúdo é interessante, traz engajamentos e viraliza para alcançar mais pessoas. Ao nos depararmos com esse tipo de conteúdo, há uma falsa sensação que todas as pessoas estão gestando […] Essa avalanche de chá revelação que vem culminando no ambiente digital atualmente, é fruto desse número de pessoas que vêm divulgando sobre gestação como forma de comunicar uma notícia importante e gerar o que chamamos de buzz. Logo, por se tratar de um tema sensível, o algoritmo das plataformas entra em ação ecoando esses conteúdos para mais seguidores, tornando-o viral”, explicou.
Além disso, Coutinho aponta uma tendência em tornar a maternidade um “produto” nas redes, comportamento que pode influenciar na decisão de famílias, devido a falsas promessas.
Segundo ele, é comum ver influenciadores romantizando a gestação nas redes sociais, sendo que na realidade, existem grandes desafios para maternar e paternar.
“Gravidez pode ser decorrente dessa pressão social”
Para a psicóloga perinatal, Flávia Santiago Arouca, toda essa exposição nas redes sociais pode gerar um sentimento de frustração para quem está fora da bolha. A sensação piora com a vida materna sendo retratada de forma simplificada, escondendo as dificuldades e renúncias da fase.
“As redes sociais alimentam esse pensamento de que ‘está todo mundo tendo filhos menos eu’. Esse pensamento, esse recorte aumenta a comparação. Isso gera uma insatisfação com a própria vida que vem dessa comparação e que, na verdade, esse recorte mostra na maioria das vezes uma romantização dessa maternidade, uma felicidade, uma plenitude que esconde a exaustão, o cansaço, a ambivalência de ter um filho, depressão, renúncias que surgem quando nasce um bebê. […] Ocasiona um sentimento muito grande de frustração e de insatisfação, que na verdade não deveria existir porque é apenas um recorte da vida dessas mães”.
Desta forma, Arouca afirma que, além da falsa sensação de que há muitas mulheres grávidas, existe também a expectativa falsa de leveza e felicidade, associada ao ato de gestar, o que acaba ocultando os desafios que existem durante a gestação.
No entanto, para além da pressão virtual, a pressão social, que sempre existiu, continua em alta. É comum em eventos, principalmente envolvendo reuniões familiares, uma cobrança em relação à maternidade.
“Existe a ideia de que a mulher só vai ser completa, feliz e realizada se ela tiver filhos. De que a mulher só vai conhecer o amor verdadeiro, que ela só vai amar de verdade, quando ela tiver um filho. E muitas mulheres se sentem julgadas, cobradas para ter filho. Às vezes, a mulher não quer ter filho, mas por conta dessa cobrança ela acaba engravidando. E aí, pode não existir um desejo genuíno nessa gravidez, mas essa gravidez pode ser decorrente dessa pressão social”.
Assim, quando a mulher vai contra as imposições, tende a ser vista de forma negativa pela sociedade, o que pode influenciar na sua decisão.
“As redes sociais têm tratado a maternidade sob duas vertentes: a romântica e a real”
Em contrapartida a esse falso “boom”, a influência de terceiros na decisão da gravidez tem impactado cada vez menos, o que tem causado gestações cada vez mais tardias. Nos últimos anos, o Brasil tem registrado um crescimento expressivo no número de mulheres que optam por engravidar após os 30 anos.
De acordo com os dados mais recentes do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), em 2023, cerca de 39% dos nascimentos no país foram de mães com 30 anos ou mais, o maior percentual já registrado desde o início da série histórica. Esse número confirma uma mudança de perfil das mães brasileiras e acompanha transformações sociais ligadas à vida profissional, estabilidade financeira e acesso à informação.
O fenômeno tem sido constatado pela Dra. Genenieve Coelho, médica ginecologista e especialista em reprodução humana, que atende, em sua maioria, pacientes entre 35 e 45 anos. Ela acredita, não apenas na influência negativa das redes sociais, mas também que existe uma retratação real.
“As redes sociais têm tratado o assunto da maternidade sob duas vertentes: a romântica e a real. Muitas personalidades têm emprestado sua voz para falar dos bastidores da maternidade e das dificuldades enfrentadas por mães, que tentam se manter ativas profissionalmente, fisicamente atraentes e ainda desempenhar bem esse papel, mas os profissionais de medicina, ginecologistas, principalmente, também têm o desafio de tratar sobre saúde reprodutiva de maneira rotineira em seus consultórios”.
Desta forma, a médica acredita que a pressão social ainda existe, mas que hoje atinge as mulheres de uma forma menor.
“Acho que tanto a sociedade, quanto as redes sociais podem, de alguma forma, pressionar as mulheres, mas isso hoje tem proporções muito menores, porque a mulher não tem mais como único papel o de gerar bebês. A conquista de novos espaços trouxe novas opções para as mulheres, para além da maternidade”.
Assim, ela reforça que o adiamento da maternidade tem se tornado cada vez mais comum, sobretudo pelo desejo de conquistar outros objetivos. Desta forma, reitera que não há crescimento na natalidade, mesmo com a falsa sensação que as redes sociais proporcionam.
“Não percebo um aumento no número de mulheres grávidas. Pelo contrário. Por conta de diversos fatores (clínicos, sociais e de hábitos de vida), tem crescido o número de mulheres que não desejam ter filhos, mulheres indecisas sobre a maternidade e mulheres inférteis em busca de tratamentos para engravidar […] O que percebo é que as mulheres querem ter poucos filhos — um, no máximo dois — e que o adiamento da maternidade tem se tornado cada vez mais comum, por conta de outros objetivos, como ascensão profissional, desenvolvimento acadêmico, estruturação financeira ou, ainda, por não terem encontrado o parceiro ideal. Por isso, tem crescido a procura de mulheres pelo congelamento de óvulos”.