PASSADO
“Quando eu passei a morar aqui, o trem que rodava ainda era a Maria Fumaça. Não tinha energia, não existia sequer asfalto na Suburbana”. O depoimento de Maria Auxiliadora Andrade Leite, 63 anos, retrata a longínqua presença do conhecido trem do Subúrbio de Salvador na vida de milhares de soteropolitanos. O modal de transporte inaugurado em 28 de junho de 1860, quando o país era governado pelo imperador Dom Pedro II, foi retirado de circulação em 15 de fevereiro de 2021.
A interrupção do sistema ferroviário foi uma iniciativa do governo da Bahia, que apresentou um projeto de implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) no trajeto atendido pelo antigo modal.
A linha férrea começou a operar sob concessão da Bahia and São Francisco Railway. Já em 1911, a operação passou à Compagnie Chemins de Fer Federaux du l’Ést Brésilien, que ficou responsável pelo sistema até 1934. Após este período, o modal passou para os cuidados da União, sob gestão da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro. Em 1957, ocorreu a integração dos trens à Rede Ferroviária Federal (RFFSA). No ano de 1988, a linha férrea, já limitada ao trecho de 13,5 quilômetros entre bairros de Paripe e Calçada, torna-se uma responsabilidade da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU). Entre 2005 e 2013, a administração ficou a cargo da Prefeitura de Salvador, que decidiu repassar o modal para o governo estadual.
Nos tempos áureos ou no período de declínio, os trens sempre tiveram protagonismo e relevância na vida dos milhares de moradores da região periférica da capital baiana, que ganhou o nome de Subúrbio Ferroviário em alusão ao trecho por onde o modal circulava. Essa área engloba ao menos 22 bairros, abarcando uma população estimada de 300 mil pessoas, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre estes habitantes está Maria Auxiliadora, que vive no bairro de Praia Grande há 60 anos e assistiu a diversos momentos pelos quais o sistema ferroviário passou.
“Cheguei aqui ainda criança, o trem rodava em via de dormente. Era movido a vapor, depois passou para óleo diesel, veio o elétrico também. Sei que nesse tempo todo, em todos estes ciclos, ajudou muito as pessoas que moravam aqui no Subúrbio. Fez muita falta para nós”, relatou Maria Auxiliadora, que viajava diariamente no sistema ferroviário de Praia Grande até Paripe, onde pegava um ônibus para ir trabalhar no Centro Industrial de Aratu (CIA).
Ela recorda como o trem servia à população suburbana e externa o sentimento de otimismo em relação ao que poderá vir com o novo modal.
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O líder comunitário Joceval Tibúrcio, presidente da União Bairros de Salvador (Unibairros), recebeu a reportagem do PS Notícias no bairro de Praia Grande, local onde nasceu e cresceu. Ele relembrou a importância dos antigos trens de ferro ao longo de 160 anos, conectando, inicialmente, Salvador com regiões mais distantes e, mais recentemente, interligando os bairros do Subúrbio da capital.
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Residente no bairro de Praia Grande há 50 anos, Maria Irandir conversou com a reportagem enquanto assistia à movimentação dos operáris que trabalham na implantação do VLT. Entre o saudosismo e a esperança, ela conta como era a dinâmica da vida dos moradores com a presença do antigo sistema ferroviário.
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O professor Juan Moreno, pesquisador do Departamento de Engenharia de Transportes e Geodesia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) também afirma que o sistema ferroviário poderia ser modernizado.
“Tem muitos especialistas no setor, na área ferroviária, que já se pronunciaram sobre isso em audiências públicas. Por quê? Porque tem poucos anos que houve um grande investimento. Foram R$ 180 milhões de reais que foram investidos nos trilhos, no trecho urbano. Houve investimentos na renovação da frota, ou seja, para melhorar e modernizar os veículos. Evidentemente, os trens tinham o limitante da antiguidade, mas eles cumpriam seu papel social”, relata o pesquisador.
PRESENTE
Hoje, moradores da região da Suburbana relembram a rotina e comodidade proporcionada pelo sistema de transporte. Quando foram desativados há quatro anos, o preço da passagem era R$ 0,50. Viajar de ônibus, meio de transporte para o qual a população teve que migrar, custava à época R$ 4,00. Em 2025, o valor chegou a R$ 5,60.
Uma pesquisa realizada em 2019 pelo Bákó Escritório Público de Engenharia e Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) e a empresa Tec&Mob mostrava o impacto socioeconômico que a retirada do trem causaria na vida da população residente no entorno do modal. O estudo apontou que o gasto médio das pessoas com o trem era R$ 20,00, considerando viagens de ida e volta.
A pesquisa de avaliação do impacto socioeconômico da retirada do trem, que seria substituído naquele momento por um monotrilho, apresentou um cenário preocupante para as autoridades e especialistas. O estudo indicou que 42% dos usuários do sistema ferroviário ganhavam, naquele momento, menos de um quarto do salário mínimo e estavam abaixo da linha da pobreza. O levantamento também revelou que 80% da população chegava às estações do trem a pé e 70% admitiam que deixariam de usar o sistema de transporte proposto por causa da discrepância nos valores da passagem.
O Ministério Público baiano e o Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá) chegaram a acionar o Tribunal de Justiça (TJ-BA) para que o governo estadual adotasse medidas para mitigar os danos à mobilidade da população atendida pelos trens. Na ocasião, o governo estadual argumentou que ofertaria transporte alternativo ao público prejudicado com o encerramento das atividades do sistema ferroviário. No entanto, a promotora de Justiça Hortênsia Pinho, à frente do caso na época, afirmou que a gestão não considerou a extrema vulnerabilidade socioeconômica dos passageiros que utilizavam os trens.
Na ação, o órgão ministerial e o grupo ambientalista ressaltaram que os usuários dos trens gastavam cerca de R$ 20,00, mas passariam a desembolsar R$ 160,00.
“Essa mudança reduzirá sensivelmente os níveis de acesso ao transporte. Assim, resta evidente que não foram adotadas as devidas e pertinentes medidas mitigadoras para salvaguardar a dignidade e o direito fundamental social da população vulnerável usuária de trem, ou, em outras palavras, impõe aos usuários a imobilidade e o esvaziamento do direito fundamental ao transporte”, relataram as duas entidades na ação judicial.
Embora defenda a chegada do VLT, Joceval Tibúrcio concorda que a forma como o antigo trem foi retirado deixou a população desassistida em relação à mobilidade.
“O nosso trem terminou sendo retirado de circulação pelo governo do estado sem que houvesse garantias financeiras e operacionais de implantação imediata de um transporte alternativo ao sistema de trem que a gente tinha. A comunidade concordava que aqueles trens tinham que ser substituídos, mas a ferrovia era nova, toda recuperada”, disse.
Outro ponto observado pelo presidente da Unibairro é a discussão a respeito da tarifa acessível que o antigo modal tinha. Para o VLT, ele não acredita na aplicação do valor simbólico.
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O professor Juan Delgado Moreno, que também é coordenador do Centro de Estudos de Transportes e Meio Ambiente (Cetrama) na Escola Politécnica da Ufba, explica que a região do Subúrbio Ferroviário possui forte dependência de áreas como o Centro de Salvador e o Comércio. Nesse sentido, com a retirada dos trens com passagem de baixo custo, os moradores sofreram impactos imensuráveis.
“São grupos sociais com menor renda, muitas famílias estão abaixo da linha da pobreza. A retirada de um modo de transporte nessa escala, com uma tarifa social de 50 centavos, é de um impacto tremendo”, apontou o especialista.
Segundo Moreno, naturalmente, poderia ser implantado um sistema de transporte com uma tarifa convencional. No entanto, considerando o histórico da tarifa social e a condição financeira da população atendida pelo antigo modal, deveria existir algum tipo de subsídio público na nova operação.
Assim, complementou o professor da Ufba, os órgãos públicos, incluindo governo estadual e prefeitura municipal, deveriam ofertar uma alternativa de mobilidade para a população.
“Podemos dizer que junto ao impacto social e econômico, temos o impacto da perspectiva do sistema de transporte. Porque se retirarmos um sistema de transporte, nós temos que oferecer uma alternativa, ainda que temporária, provisória, para esse grupo social. Não foi proposto nada como alternativa. Ali, passou a ser o território do transporte informal, como as vans, topiques ou mototáxis. Uma coisa é retirar o sistema de transporte que é econômico, e outra coisa é não fornecer nada em troca, outro modo alternativo”, contextualizou.
Nesse aspecto, o pesquisador foi além e criticou a postura da Prefeitura de Salvador no processo de desativação dos trens. “O governo do Estado retira o trem urbano, mas a Prefeitura de Salvador tinha toda a autoridade para interferir no processo e encontrar uma solução. Ela foi omissa, ficou em silêncio e não apresentou uma solução. Ela tem atribuições por lei, porque é responsável pelo Plano de Mobilidade da cidade”, alertou.
Para o professor Juan Moreno Delgado, embora o VLT esteja projetado para operar em uma área urbana, o trecho em que substituirá o antigo trem tem um problema. Assim como o metrô, o BRT e outros modais possuem características e recomendações de implantação específicas, o mesmo ocorre com o VLT.
“O VLT é primordialmente implantado em áreas urbanas consolidadas com atividades urbanas claramente definidas, com um meio ambiente construído consolidado, coisa que não temos na Suburbana, onde não tem ocupação urbana consolidada. O VLT está próximo do mar, uma vez que ele deveria estar próximo das atividades urbanas por todos os lados. Só pelo fato de estar próximo do mar já perdemos 50% da demanda, pois um lado do modal praticamente não terá demanda. Por isso, todas esses detalhes devem ser pensados quando temos um plano de mobilidade e quando fazemos estudos de viabilidade”, explicou.
FUTURO
A reportagem do PS Notícias esteve no canteiro de obras da implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). No lugar onde ficam os trilhos do antigo trem, operários estão construindo a estrutura que dará sustentação às novas composições.
As obras foram iniciadas em junho do ano passado. Em julho, o governo baiano anunciou a compra de 40 vagões junto ao governo do Mato Grosso. O projeto do VLT prevê 37 quilômetros de extensão distribuídos em três trechos:
- Trecho I: Calçada – Ilha de São João – 16,66 km
- Trecho II: Paripe – Águas Claras – 9,20 km
- Trecho III: Águas Claras – Piatã – 10,52 km
No último dia 21 de julho, a história do VLT de Salvador ganhou um novo capítulo. O governo baiano assinou um aditivo contratual do lote 1 para implantar um trecho do modal da Calçada até o bairro do Comércio.
“Estamos ampliando o VLT da Calçada até o Comércio com mais seis estações, garantindo acesso facilitado a pontos como a Feira de São Joaquim, o Moinho, o Instituto do Cacau e o Porto, além de melhorar o deslocamento até o Bonfim e o Subúrbio”, disse o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), durante evento em que anunciou a novidade.
O projeto de implantação do VLT de Salvador é coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur) e executado pela Companhia de Transportes do Estado da Bahia (CTB). Com investimento previsto de R$ 5 bilhões, o novo modal tem estimativa de atender cerca de 100 mil passageiros por dia em toda sua extensão.
Durante o ato de autorização do início das obras em junho de 2024, a CTB informou que a previsão é que o valor da passagem do VLT seja a mesma do sistema do metrô. Atualmente, a tarifa cobrada pelo sistema metroviário é de R$ 4,10.
De acordo com informações divulgadas pelo governo baiano, a previsão é que as obras do novo modal sejam concluídas em 2027 com entrega gradual dos trechos.
O professor Juan Moreno, especialista em Engenharia de Transportes, é um crítico da escolha do modal VLT para substituir os tradicionais trens do Subúrbio. Ele afirma que entre o monotrilho, anteriormente proposto pelo governo, e o veículo leve sobre trilhos, o VLT foi a melhor escolha do ponto de vista técnico-operacional.
No entanto, com o fim do modal ferroviário, o pesquisador ressalta que a cidade perdeu um trem regional em detrimento de um modal de solução urbana.
“Sacrificamos uma solução regional em troca de uma solução urbana. Particularmente, não acredito que o VLT, da maneira que ele está sendo implantado, em função das características técnicas e operacionais, possa chegar a Alagoinhas. Coisa que o trem tinha capacidade de fazer. A nossa cidade deveria ter uma solução de transporte regional”, defendeu.
Agora, completou o professor de engenharia de transportes, a expectativa é que o VLT possa atrair a população enquanto opção de transporte, como era o trem. “Esperamos que haja um fenômeno de indução. Ou seja, que ele possa atrair as viagens de usuários de outros modais. Esperamos que os usuários de automóveis usem o VLT, o que seria sustentável”, diz o especialista.
Para que esse fenômeno ocorra, detalha Moreno, o VLT deverá estar integrado eficazmente com a rede pública e privada de transporte.
“É preciso ter integração com a bicicleta, com a calçada para o pedestre, com a rede de transporte, seja ônibus ou micro-ônibus, com o Uber, até com o mototaxista popular. Porque o mototaxista é um modo de transporte popular em um bairro popular, como naquela região. Agora, se a tarifa é cara, é um fator que vai fazer que ele não seja tão atrativo”, enumerou o professor.
A Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Sedur) foi procurada pela reportagem do PS Notícias para detalhamento do projeto do VLT, mas não retornou até a publicação desta matéria.
Em uma audiência pública realizada na Assembleia Legislativa da Bahia (Alba) em maio deste ano, a secretária da Sedur, Jusmari Oliveira, explicou que o o VLT será um modal de integração com outros sistemas de transporte presentes na capital, a exemplo de ônibus e do metrô. Neste caso, ocorrerá a integração no complexo rodoviário em construção no bairro de Águas Claras.
Potencial turístico da região
O dirigente da Unibairros, Joceval Tibúrcio, é um entusiasta da implantação do VLT na região. Ele relata que foi, junto a outras lideranças comunitárias, um dos responsáveis pela sugestão feita ao governo estadual para aquisição de vagões do VLT que seria implantado em Cuiabá, no estado do Mato Grosso. Lá, o governo estadual desistiu de investir no modal após decidir que o sistema Bus Rapid Transit (BRT) seria mais viável financeiramente e tecnicamente para a capital mato-grossense.
“O governo nos apresentou e licitou um projeto que a gente sonhou, discutiu e debateu com as entidades em audiências públicas, em consultas públicas feitas na nossa região. Agora, vamos ter um veículo leve sobre trilhos, de superfície, porque não é possível agredir ambientalmente um lugar tão lindo como esse, com essa paisagem maravilhosa, que é a Baía de Todos os Santos, que tem um potencial de captação turística fantástica”, vislumbra o líder comunitário.